Direito, Epistemologia e
Racismo*
Sérgio
São Bernardo[1]
Se pensarmos o direito como uma
linguagem aberta e entendermos que essa é uma área da ação humana anterior aos
estudos da norma, da justiça e sua conformação como ciência, podemos iniciar um
debate sobre o racismo e a epistemologia no direito. O Direito é da ordem da existência
humana e dela não podemos prescindir. Se colocarmos o Direito numa perspectiva
multidimensional, transdisciplinar e numa linguagem aberta, teremos um tipo de
saber humano, a partir de um lugar que pensa o todo num horizonte sempre
contextualizado e valorativo. É sempre um discurso moral, que ao moralizar os “outros”
em alteridade, funda uma ética que institui o Direito. Kant quis destruir Deus
e colocou a moral no lugar. Aristóteles coloca a comunidade como definidora da
justiça edo direito e a moderna ciência a coloca a norma jurídica, ora numa linguagem
matematizada,ora numa linguagem argumentativa.
Esse é o desiderato das
epistemologias eurocêntricas modernas. Utiliza-se de um pragmatismo universal
para substituir dogmas e práticas tradicionais, mas sempre volta a ela com marcante
energia e reacionarismo. A epistemologia da pragmática universal parece se
apresentar como a única capaz de entender e assimilar os “outros”. O Direito não
pode ser apenas uma parafernália a serviço do poder instituído e da afirmação
de uma verdade monolítica, traduzível apenas em um par de linguagens e etnias. Por
isso temos que seguir uma linha oposta e nos desincumbirmos dessa tradição
epistemológica. O saber dos “outros”, das Américas, da Ásia e da África,
tem que fazer parte da agenda da Universidade em processo de multidiversidade.
O saber que alimenta a produção do Direito e dos princípios de justiça decorre
do acontecimento humano em ação, em desejo, em vontade. Uma pragma que pode
habitar a física e a metafísica universalizante. Por isso, a metafisica ancestralizada
na América, na Ásia e na África está ainda a fazer micro "revoluções"
na afirmação identitária e emancipatória. O sentido da fé torna-se um estatuto
tão poderoso quanto o estatuto da ciência.
Observe-se que para os estudos e
pesquisas jurídicas, vamos nos debater com essa mesma metodologia
de se "montar" um discurso linguístico cientificizado, com
fundamentos metafísicos isentos e neutros, como fez Kelsen ao elaborar a “Teoria
Pura do Direito” e erigir o edifício da teoria da norma e regras legais no chão
de uma abstrata "norma fundamental".
No caminho para agir com e sobre
uma metodologia de conhecimento de fronteira,precisamos tomar posição
política sobre o sistema-mundo. Esta metodologia só se constituirá numa
resposta transmoderna e descolonial se não caminharmos pelas sendas do monólogo
e do fundamentalismo. Fica o desafio de pensarmos e agirmos numa nova
perspectiva cosmopolita, crítica ou, como nos ensina Mignolo (2000),numa “diversalidade".
Ressalte-se que o debate sobre
a colonialidade se inscreve num repertório de superação
epistemológica, que, como bem diz Mignolo, nos inspira á necessidade
de praticarmos uma “desobediência epistêmica” e combatermos as
supostas armas do colonizador com suas próprias bases teóricas e
dogmáticas, afirmando outras identidades sustentadas numa nova base
epistemológica.
Ramón Grasfoguel (2005),
enfatiza esse aspecto que saiu das colendas entre os "Estudos
Subalternos" e da crítica Decolonial, onde a necessidade de desconstruir a
historiografia colonial e etnocêntrica teria que ser acompanhada de uma historiografia
nacionalista e tradicional. Estudar os pós-modernos, mesmo em perspectiva
emancipatória,
não nos desprende dos pressupostos etnocêntricos desses autores.
Ramón Grasfoguel[2] insiste na necessidade de
desenvolver uma epistemologia de fronteira ("na encruzilhada"?) onde
a premissa monológica, monotópica e totalizadora das tradições nacionais e
internacionais, tanto do centro quanto da periferiasão tematizadas e
confrontadas para além de suas propostas ideológicas. Mais uma vez, Grasfoguel:
"trata-se de uma perspectiva que é crítica em relação ao nacionalismo, ao
colonialismo e aos fundamentalismos, quer eurocêntricos, quer do terceiro mundo".
Mesmo que essa nova epistemologia ainda se estruture através dos pressupostos
do pós-modernismo e do pós-estruturalismos teremos uma dívida com a carga de
desigualdade sócio-racial que dela se desprende impedindo o alcance de sociedades
mais equitativas e justas.
Daí a necessidade de se distinguir
o "lugar epistêmico" do "lugar social". O autor nos convida
para o conhecimento de fronteira utilizando a categoria da "diferença
colonial" a partir de uma epistemologia própria. Esse propósito nos
prepararia ao enfrentamento das premissas de muitas epistemologias modernas e
sua consequente desmitificação da perspectiva do "ponto zero", típica
das filosofias eurocêntricas.
A política identitária tem tido um papel preponderante na luta por igualdade
e justiça nas Américas. Diversos estudos consideram-na, inclusive,
como um ponto de partida epistemológico. Esse lugar epistemológico e epistêmico
tem nos levado mais fundo nos debates ideologizados de colonização europeia e
exploração capitalista. O que nos orienta a não estudar por um método que não
pode ser fixo e nem linear. Não pode apontar para uma única direção. Essa
postura na elaboração de uma pesquisa sobre iniquidades humanas deve se referir
à luta identitária como mais um lugar apenas e não o único na luta mais geral
por igualdade e justiça. Isso se dá porque esse instrumento de ação social não deve
prescindir de seconfrontar com a matriz etnocêntrica e colonial, sob penade,
assim, acabar por se transformar naquilo no que, por princípio, nega. A
imposição da premissa dos terceiros incluídos[3] convida a que todos os “terceiros
incluídos” se articulem numa luta mais vasta e global contra o sistema-mundo
capitalista. O terceiro incluído se constitui na afirmação à negação dos
princípios aristotélicos de que A é A (identidade) e de que A não pode ser A e
B ao mesmo tempo (não-contradição). O que vale dizer que C pode ser o resultado
de A e B.
Quando associamos os valores e conceitos típicos de um repertório
subsaariano revitalizados na diáspora, (restituição, comunhão, integração,
unidade, imanência, comunidade, corporeidade, ancestralidadeetc., com os ideais
de uma filosofia europeia hegemônica e predominante no Brasil(que valoriza um
hibridismo ocidentalizante com forte influência cartesiana, iluminista e
logocêntrica, fundidas com o culturalismo romântico dos trópicos), acercamo-nosde
que não sabemos fazer, e não fazemos, tais distinções em nossas ações
cotidianas sobre essa ou aquela matriz a que chamamos multicultural, mas, ao
fim e ao cabo, reveste-se de uma matiz uniformizante e autoritária.
Uma proposta epistemológica que se pretenda multicultural e multi-étinica
tem,obrigatoriamente, que colocar Ratzinger em confronto com Habermas;
Dussel,em confronto com Apel; os físicos em confronto com os metafísicos; os
rabinos e católicos,em confronto com os cosmogônicos e imanentistas;as
encanterias,em confronto com os
búdicos eExu em confronto com todos os deuses e deusas.Nada prova nada em
absoluto. Nada nega nada em absoluto. E se epistemologia é a conformação
comunitária de um sistema de crença e opinião organizadas a partir de conceitos
e compreensões comuns e aceitáveis, então, os modos de estudar e difundir o saber
é pura imaginação de signos que se intercalam e se substituem ao sabor da
história, da cultura, da linguagem e do poder.
Uma epistemologia contemporânea
que pensa em sujeitos coletivos para os colocar em bases identitárias
performativas, tem que provar que não voltará ao círculo monológico em nome da
negação da própria epistemologia. Senão é repetição, não é a aventura da
diferença. Não pode se tornar ideologia. O paradigma disjuntivo/reducionista
não pode ser o antagonista simplório do paradigma conjuntivo. Ele tem que ser
sem sempre transjuntivo, transdisciplianar e aberto.A produção do conhecimento
no âmbito das universidades brasileiras tem que se alimentar dos saberes que
forma civilizatoriamente a sociedade que a promove. Uma universidade como
espaço diverso de saberes tem que se alimentar das linguagens e mecanismos
pedagógicos de difusão do conhecimento sempre de forma inclusiva e
multicultural.
Esta forma epistemológica tem que
se habilitar a enfrentar violências institucionalizadas como a que ocorre com
as práticas e rituais das instituições universitárias que restringe e viola
direitos relacionados aoestudo e à participação de determinadas etnias e raças
(seus saberes e linguagens) no contexto de oportunidades e condições ofertadas.
Este fenômeno, normalmente chamado de racismo institucional, configura-se como
um limitador da afirmação da diversidade de saberes e limitador de uma
sociedade pluralista e realizador de um direito justo.
Nessa seara, de uma epistemologia
"na encruzilhada em linguagem aberta", poderemosnos aproximar daquilo
que negamos.Se pensarmos sempre com bases eurocêntricas aquilo que ainda não
temos como nosso (e nem saberemos se o que será nosso, será tão diferente e
original quanto ao que é do outro), surgirá um terceiro que desejará sua
inclusão e,perfazendo a saga que fazemos hoje, reivindicará esse lugar e nós
teremos que morrerou fazermos parte desse que se nos apresenta.
REFERENCIAS
ASSANTE, Molefi k, The Afrocentricidea. Filadelfia:TempleUuniversity
Press, 1987. (segunda edição). Filadelfia:TepleUniversity Press, 1988.
APPIAH, Kwame Anthony, Na casa do meu pai: A África na filosofia da
cultura, Rio de janeiro, Contraponto, 1997.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho,
Rio de Janeiro, Campus, 1992.
HABERMAS, Jurgen.Teoria de laacción comunicativa I -
Racionalidad de laacción y racionalización social. Madri: Taurus, 1987b.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais.
Organização Liv. Sovik; Tradução Adelaine La Guardiã Resende, Belo Horizonte:
Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. 1ª ed. - Buenos Aires: ConsejoLatinoamericano de
CienciasSociales – CLACSO, 2005.
MIGNOLO, Walter. A Opção
Descolonial e o Significado de Identidade em Política. Tradução de: Ângela
Lopes Norte. In: Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e
identidade, nº 34, p. 287-324, 2008.
PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Tradução
de Tomaz Tadeu da Silva, Belo Horizonte: Autentica, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa:
Epistemologias do Sul. Orgs.Maria Paula Meneses, São Paulo, Editora Cortez,
2010.
[1]Doutorando do Programa de Doutorado Multidisciplinar e
Multi institucional em Difusão do Conhecimento-UFBA, Mestre em Direito Público
pela Universidade de Brasília/UNB (2007), Bacharel em Direito e advogado pela
Universidade Católica do Salvador/UCSal (1990). Atualmente é Professor
Assistente da Universidade do Estado da Bahia - UNEB / Departamento de Ciências
Humanas Campus I.
[2]Grasfoguel propõe três medidas a serem observadas: 1. a de
que uma perspectiva epistêmica descolonial exige um cânone de pensamento mais
amplo do que o cânone ocidental (incluindo o cânone ocidental de esquerda); 2.
Uma perspectiva descolonial verdadeiramente universal não pode basear-se num
universal abstrato (um particular que ascende a desenho - ou desígnio -
universal global), antes teria de ser o resultado de um diálogo crítico entre
diversos projetos críticos políticos/éticos/epistêmicos, apontados a um mundo
pluriversal e não a um mundo universal; 3.a descolonização do conhecimento
exigiria levar a sério a perspectiva/ cosmologias/visões de pensadores críticos
do Sul global que pensam com e a partir de corpos e lugares
étnicos-raciais/sexuais subalternizados." (Grasfoguel in Epistemologias do
Sul, Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos
pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade
global,2010 p. 457)).
[3]
O terceiro incluído não pode ser visto como uma construção lógica, onde uma
coisa e seu contrário coexistem apenas ou que não possua valor “cientifico”.
Comentários
Postar um comentário