Danny Glover na Bahia: “Precisamos mudar as estruturas”


Danny Glover, ator negro americano, veio ao Brasil enfileirar-se na causa antirracista em nome da embaixada da Década Internacional da Afrodescendência, proclamada pela ONU, em 2013 e com vigência de 2015 a 2024. Foi recebido em Brasília pela Presidenta Dilma Rousseff e aqui na Bahia, além da Secretaria Vera Lúcia da Sepromi, nenhum representação oficial do Governo baiano o agraciou com sua presença. Na agenda baiana, muitas “expectativas” e muitas “firulas” para o ator de “A Cor Púrpura”. Os interesses meramente eleitorais predominaram. Nada de substancial ou concreto será deixado para uma luta secular de combate ao racismo e ao genocídio para o programa baiano da Década. Isso nos impõe mais uma vez uma reflexão de qual é o papel estratégico que este segmento dever apontar frente à crise política e a situação da população negra brasileira.
O fato de estarmos nas estruturas de governos e em poderes tradicionais instituídos não nos faz traidores da causa negra. Do mesmo modo que o fato de estarmos fora da estrutura de governo não nos desautoriza de criticar os que estão no governo ou em estruturas assemelhadas. A maioria de nós e a maioria das vítimas das desigualdades que condenamos e combatemos nos querem ocupando alguma forma de poder. A questão é que, mais um período eleitoral se avizinha e, seremos conclamados a sermos eleitores, candidatos, cabos eleitorais, votarmos nulo ou a não nos metermos em política. O cenário de golpe institucionalizado que vivemos exige mais de nós do que a presença solidária e glamorosa do ator americano. Teríamos que fazer do limão da ONU, e da crise brasileira, uma limonada em grande escala.
Esta foi e é uma contradição histórica que carregamos: devemos permanecer em um espaço de poder onde não temos hegemonia ou saímos dele e fazemos oposição? O que construímos no lugar da negação dos espaços de poder em que não temos hegemonia? A primeira opção só tem sentido se apontarmos os erros e limites da ação política (no sentido Arendtiano) no interior dos poderes instituídos e dos governos. A segunda opção, na maioria das vezes, nos mostra que, quando criticamos e saímos dos governos e poderes instituídos tradicionais, criamos outras estruturas de poder tão ou mais autoritárias, setorizadas, subalternizadas e utilitaristas que aquelas que criticávamos. Um outro fenômeno que deve ser tematizado é a acentuada pulverização de lideranças e organizações negras em diversos espaços organizativos com proposições opostas e superpostas; o que não impede que construamos o mínimo razoável de uma agenda global de teor libertário e emancipatório que contenha um modelo combinado de forte inspiração antifascista, anti-capitalista, anti-latifundiária, anti-machista, antirracista e anti-homofóbica.
Alguns estão no governo e se esforçam para imprimir uma dinâmica modificadora de impactos sobre as desigualdade e acabam por melhorar as coisas “por dentro”. Entretanto, isso torna-se insuficiente pela ausência de um projeto político para a maioria negra. Outros estão fora do governo e se utilizam de métodos parecidos com aqueles que criticam e acabam por maquear as coisas “por fora”, tornando-se também insuficiente pela ausência do mesmo projeto. Temos ainda aqueles que estão dentro e fora como um joão-bobo e a agonia se agiganta porque nada de novo sairá disso. Não podemos nos desvincular do debate dos verdadeiros interesses e motivações. Experiências e consertos multiculturais, comunitaristas, autogestionárias, empreendedoras, etnodesenvolvimentista, estão sendo vinculados a concepções mais amplas e este é um caminho positivo a ser traçado. Não serviremos aos propósitos de uma elite raivosa, machista e racista e nem aos interesses de certas concepções entreguistas, eleitoreiras e utilitárias de roupagem progressista.
Urge um debate intenso, prolongado, com pretensão de se montar um programa mínimo. Precisamos superar velhas cisões e buscar novas agendas originárias. Temos que ganhar a sociedade se temos um projeto para a maioria negra. Esta imposição se apresenta como uma necessária capacidade de articularmos uma maioria contra hegemônica e instalarmos um debate sobre um modelo de sociedade para uma maioria negra no Brasil. As vias que se apresentam para criticar os possíveis aliados de um projeto global futuro, se confundem com posições dúbias e contraditórias dos críticos que acabam por conviverem com lógicas de balcões, editais, candidatos, parlamentares, religiosos, agencias e representações internacionais, órgãos de classe, empresas e ONGs que recebem recursos de fontes, em grande parte, questionáveis. Ninguém mais representa a maioria e a necessidade é de construir um projeto para a maioria.
A coisa mais fácil do mundo na política é detonar quem está no poder e, contrariamente, ingenualizar quem está fora. A disputa intestina parece ser a arma corriqueira. Mas ela é autofágica, mesquinha e demagógica. Porque não se apresentam argumentos e convicções ao invés de detratações? Quando um negro ou negra está fora do governo mas que possui relações com estruturas tradicionais ou alternativas de poder, também é negro e negra no poder. Tornamo-nos muitas coisas e passamos a reivindicar muitas coisas que oras são complementares, oras são contraditórias.
Esta é uma condição elementar - estamos numa transição e no meio de uma encruzilhada histórica. Saber o que estamos fazendo, e deveríamos fazer por dentro, e o que estamos fazendo, e deveríamos fazer por fora, são condições sagradas para alimentar o prenúncio de um projeto. Para isso temos que fazer um debate denso e aberto. Entender as bases conceptivas de Estado, de governo e de poder político que cada um critica, ouvir atentamente aqueles que se opõem, refletir sobre as suas proposições e construir alternativas duradouras. Nesse caminho, o desapego e a autocrítica são redentores. Usemos estas eleições e a crise de Estado e de governo, aliada à usurpação golpista institucionalizada, para realizarmos o mais profundo debate sobre o negro e o Brasil. Atentemos para o que nos disse o ativista americano em sua fala na Sociedade dos Protetores dos Desvalidos, no último sábado pela manhã: “precisamos mudar as estruturas”.
Sérgio São Bernardo

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