A ISONOMIA DE TRATAMENTO A TODAS AS RELIGIÕES NO BRASIL

Recentemente foi aprovada pela Câmara dos Deputados a Mensagem 134 que trata do acordo Brasil-Santa-Sé. Tal documento preserva alguns benefícios e direitos já exercidos pela organização religiosa sediada no Vaticano que, agora, por força de lei, lhe é concedida formalmente. Outras organizações religiosas e políticas se colocaram contra a aprovação deste documento assinado entre os dois Estados, que garante entre outras prerrogativas: a concessão de isenção fiscal para rendas e patrimônio de pessoas jurídicas eclesiásticas; a manutenção, com recursos do Estado brasileiro, do patrimônio cultural da Igreja Católica, como prédios, acervos e bibliotecas e a isenção para a Igreja Católica de cumprir as obrigações impostas pelas leis trabalhistas brasileiras, além disso, preserva a autonomia desta para celebrar outros convênios além daqueles já previstos no acordo.

Em razão das manifestações de contrariedade ao projeto, diversos parlamentares solicitaram um amplo debate sobre o tema. Outros propuseram projetos de lei alternativos ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. Um deles, de autoria do Deputado George Hilton, do PP de Minas Gerais, eufemisticamente denominada “Lei Geral das Religiões” repete fielmente o texto da concordata firmada entre o Brasil e a Igreja Católica respondendo a uma reivindicação ostensiva em nome do Estado laico e da isonomia entre as religiões existentes no Brasil. Este projeto também foi aprovado, após exaustivo debate sobre o assunto.

A aprovação do projeto, com texto semelhante, (ambos com o mesmo número de artigos) busca assegurar o direito de todas as doutrinas religiosas nos mesmos termos já concedidos à Igreja Católica, pode ter dado a entender que a querela de manter privilégios à milenar instituição papal estaria resolvida. Acreditamos que ainda não. Existem algumas lacunas nos dois textos aprovados que deixam minar a idéia de um texto universal extensivo a todos os credos e religiões existentes no solo brasileiro.

Quando o texto da lei diz expressamente que o Estado brasileiro, fundado no direito de liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, - vide art. 2º do mencionado estatuto - acaba por oficializar uma experiência doutrinária no espaço público estatal, sem que garanta, em igualdades de condições, o mesmo tratamento ás outras experiências religiosas praticadas no país. Este fundamento é o mesmo que considera que as ações afirmativas, quando aplicada a grupos historicamente vulneráveis, podem ser aceitas como um dispositivo legal realizador de justiça. Entretanto, neste caso, vimos um verdadeiro caso de ação afirmativa estatal em favor de grupos religiosos que não são vulneráveis e não sofrem atos sistemáticos de intolerância religiosa.

É visível a intenção de solucionar uma questão política e histórica com arranjos legislativos artificiais que podem não tratar com profundidade um tema que se confunde com a formação do Estado Brasileiro e a superação de suas desigualdades estruturais. A partir de um modelo já existente, - a concordata entre Brasil e Vaticano – o novo texto legal, que garante isonomia de tratamento ás demais religiões, acaba por mimetizar o mesmo texto feito originariamente para uma visão de mundo, necessidades e aspirações típicas do ideário cristão e suas diversas matizes, atendendo uma determinada ordem de interesses e projetos. “O diferente” teve que aceitar o modo como “o igual” age para ser considerado aceito.

Por certo que, a divergência instalada entre cristãos católicos e cristãos evangélicos acabou por colocar na ordem do dia o debate sobre o papel da Igreja e do Estado, assim como, o papel da política e da religião nos espaços públicos e privados. Chantal Mouffe, cientista política inglesa, nos dá uma dica importante: uma coisa é a Igreja atrelar-se ao Estado que deve permanecer laico, isonômico e plural, outra, é a possibilidade dos religiosos exercerem o direito de fazer política na esfera publica.

O direito á liberdade de consciência, de credo e o livre exercício dos cultos religiosos para que sejam efetivamente assegurados, necessita de proteção legal e de uma atitude do Estado ao reconhecer o caráter multicultural da sociedade brasileira. Não há como conceber o mundo da religião restrito ao mundo do privado. Do mesmo modo, não há como conceber o mundo da política sem as devidas unidades de interesses próprios de cada manifestação religiosa e entendê-las como depositárias de princípios, costumes e sistemas de crenças motivadores de sua condição coletiva.

Por isso que, a tradição religiosa de matriz africana, plasmada na vida social e política brasileira, constituiu-se numa cosmovisão identitária altamente diversificada e, ao mesmo tempo, unitária em certos valores e ação política. O que podemos chamar de uma cultura religiosa afro-brasileira se compõem de uma dezena de manifestações espirituais com as suas singularidades, elementos ritualísticos e doutrinários próprios - ainda que sincretizados -, e distintos da tradição doutrinária de base cristã e seus diversos matizes (evangélicos, pentescostais, neopentescostais, metodistas, missionários etc.) encontradiço na estrutura lingüística dos dois textos aprovados.

Neste caso, outras religiões, - Islâmicos, Ciganos e Budistas, por exemplo, realizam-se através de suas bases doutrinarias e estruturais próprias, conformando outra ordem de fundação mitológica criadora, outro modelo de ação sacerdotal e outro repertório de solenidades e rituais, sendo recepcionados, em alguns casos, pela sociedade civil e pelo Estado com sentimentos e gestos diferenciados que beiram a intolerância.

O acordo foi elaborado com especificidades e graus de interesses a partir de um contexto do Direito Internacional Público entre duas nações historicamente consideradas e não pode ser utilizado como parâmetro para arremedar o direito de liberdade religiosa para as demais. É evidente o caminho artificializado e alienígena da medida legal. Ao repetir um texto originariamente exclusivo da Igreja Católica para uma norma padrão e universalizável, tornou impossível sintetizar os valores democráticos da pluralidade política á todas as manifestações religiosas no Brasil.

Vários dispositivos existentes nos diplomas legais aprovados pela Câmara dos Deputados não coadunam com os interesses históricos e doutrinários do conjunto das expressões religiosas existentes no Brasil. A referência á expressões e categorias tais como Bens Eclesiásticos art. 5º, parágrafo 1º, Capelães Militares, art. 9º, Seminários, art. 10, parágrafo 3º, Leis Canônicas, art.12, Confissão Sacramental, art. 13, Ministros Ordenados ou Fieis Consagrados, art. 15, Apostólica, pastoral, litúrgica, catequética, evangelista, missionária, prosélita, assistencial, de promoção humana, art. 15 parágrafo único, são alguns exemplos de que a chamada “Lei Geral das Religiões” comete os mesmos erros históricos de natureza política, jurídica e doutrinária. Não supera uma limitação original: a leitura de mundo dos proponentes da proposição legal ainda esta presa ao ideário totalizante do cristianismo e suas construções monistas e unívocas da realização espiritual.

Deve ser repensado o conteúdo e a forma de um possível texto legal que venha contemplar aquilo já consagrado na carta constitucional em que assegura a laicidade, a isonomia e a pluralidade de tratamento entre as expressões de fé e consciência. Sem prejuízo de que o debate pode ter sido solapado pela assimetria da justiça política, defendemos a garantia de arranjos legislativos - leia-se emenda aditiva - que contemple a universalidade e a singularidade, aproximará o teor da lei naquilo que podemos chamar de realização do princípio da equidade, ou seja, tratar desigualmente os desiguais.

Neste desiderato, a inclusão de elementos conformadores da multireligiosidade brasileira. Antevisto pelo reconhecimento da liberdade de consciência e de crença dos afrobrasileiros e da dignidade dos cultos e religiões de matrizes africanas praticados no Brasil, traz para a riqueza dos debates, a pluralidade das experiências cosmogônicas, mitológicas e doutrinarias sobre as distintas macro-narrativas que orientam a vida privada e a vida pública no Brasil.

Neste caminho, devem ser garantidas á luz do que o movimento social e religioso de matriz africana vem fazendo nas últimas décadas, a inclusão das seguintes reivindicações constantes no texto do Estatuto da Igualdade Racial em tramitação no Congresso Nacional:

1. as práticas litúrgicas e as celebrações comunitárias, bem como a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de espaços reservados para tais fins; 2. a celebração de festividades e cerimônias, de acordo com os preceitos de religiões afro-brasileiras; 3. a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às religiões afro-brasileiras; 4. a produção, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas litúrgicas das religiões de matrizes africanas; 5. a produção e a divulgação de publicações relacionadas com o exercício e a difusão das diversas espiritualidades afro-brasileiras; 6. a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das religiões afrobrasileiras; 7. o acesso aos órgãos e meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões e denúncia de atitudes e práticas de intolerância religiosa contra estes cultos.

Deve ainda em nome da igualdade legal e preservação do patrimônio civilizatório afro-brasileiro: 1. facultar aos praticantes das religiões de matrizes africanas e afro indígenas ausentarem-se do trabalho para a realização de obrigações litúrgicas próprias de suas religiões, podendo tais ausências ser compensadas posteriormente.

Outro aspecto fundamental para consecução do princípio da diversidade e do respeito á dignidade humana é 2. a garantia de assistência religiosa aos pacientes dos hospitais e assemelhados, bem como aos presos, internos e detidos no sistema prisional que são praticantes de religiões de matrizes africanas.

O modo como são exercidos o direito de fé e consciência não obedece a um padrão homogêneo. É bastante comentada a situação de algumas religiões que não são respeitadas em suas manifestações. Por isso, deve o Estado: 3. adotar as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e outras existentes no Brasil, à discriminação de seus seguidores, coibindo a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas.

Em nome dos princípios democráticos, da isonomia e da laicidade, mister que seja assegurada a liberdade de culto e a democratização dos espaços públicos para o uso equitativo dos equipamentos e do patrimônio cultural e religioso. Deve o Estado buscar a saída do pluralismo político religioso como mecanismo realizador da justiça estatal. Este será o modo como faremos do Brasil um país de iguais em sua honrosa e sagrada diferença.



INSTITUTO PEDRA DE RAIO - JUSTIÇA CIDADÃ

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