A NECESSIDADE DO OUTRO PARA A EXISTÊNCIA DO SER

Heidegger está convencido que a existência no mundo (a evidencia ôntica) constrói uma estrutura ontológica do ser. Daí a máxima a essência da presença está fundada em sua existência. Do mesmo modo o “ser-em-si” só se realiza com a existência dos outros, não é através de entes destituídos do caráter da presença que podemos analisar a existência. É a co-presença que os constitui, é no encontro com os outros que se justifica a presença.

É importante enfatizar a noção de "outros" em Heidegger. Esses não são os restantes a partir de mim mas, sobretudo os idênticos a mim. A co-presença é o ser-em-si intramundano. Não há necessidade da presença conjunta com outros para o estabelecimento da presença ôntica do eu. Estar-só seria uma deficiência da existência no mundo.

É aqui que reside toda nossa discordância, porquanto seja impossível estabelecer uma presença com o estranhamento do outro. Não há a pré-ocupação nesse estágio, essa ocupação necessária para o aprimoramento da existência com outros. Lévinas irá nos dizer da imposição do toque e do reconhecimento do rosto para o aparecimento da ética a partir da ontologia. Essa mesma dimensão vai nos trazer Sartre, com a também impositiva noção de responsabilidade para com o outro. Uma preocupação, portanto, que não se apadrinha, sem domínio e sem subserviência, proporcionadora de uma reciprocidade relacional. Essa é uma dimensão ética que possibilita uma nova noção normativa entre os sujeitos no mundo.

Mas será mesmo Heidegger que irá nos dar a resposta para essa crise existencial? As expressões substituição dominadora e a anteposição liberadora da preocupação com o outro são extremos que ele vai desenvolver para explicar a manutenção do existente (do ser com-da-presença) mesmo com o desconhecimento do outro. O outro apenas subjetiva o eu para sua própria presença. Essa é uma dimensão isolada de um sujeito que se tornará mais adiante um ser para si mesmo, portanto, destituído de responsabilidades sociais e da simpatia, como bem afirma Heidegger:

Parece que Heidegger quando estava tentando dizer que o sentido mesmo do seu “ser para os outros” era algo ainda impenetrável. Mesmo afirmando que o outro possui a sua existência, Heidegger se engasga em sua impossibilidade de pensar algo além disso, como faz Lévinas, com a noção do terceiro, pois para ele o “outro é um duplo de si próprio.” Sua grande e valiosa contribuição ainda reside na elaboração da tese do ser-com enquanto constitutivo existencial do ser-no-mundo e a presença compartilhada que se realiza no encontro no mundo.

Quem são os outros? Essa é a lacuna heideggeriana. O outro não é impessoal. O outro tem rosto e significado, portanto, existe como um eu instituído de diferenças e peculiaridades que afetam mesmo os modos do ser, vai nos dizer Lévinas. Mas devemos reconhecer que a medianidade de que fala Heidegger é que elabora as noções de mundo universalizáveis e que instrui as tradições normativas de uma sociedade.

Para Heidegger o princípio da identidade é uma lei vital. Os dois elementos que formam a sentença "A é A" servem para evidenciar o mesmo. Essa mesmidade é singular e está restrita ao um e ao outro e aprofunda o sentido da unidade. “O princípio da identidade fala do ser do ente.” Toda a tradição ocidental tem se esforçado nesse sentido: o de estabelecer uma unidade da identidade. Parmênides diz: “o ser faz parte da identidade”. Identidade é um traço do ser para Heidegger. Outro dado relevante é a perspectiva simbiótica do outro em Heidegger. A responsabilidade pelo outro é um imperativo heideggeriano, pela natureza mesma de sua situação no mundo:

Homem e ser estão entregues reciprocamente um ao outro como propriedade. Pertencem um ao outro. Deste pertencer-se reciprocamente homem e ser receberam, antes de tudo, aquelas determinações de sua essência, nas quais foram compreendidas metafisicamente pela filosofia (HEIDEGGER, 1996).

Quem é a presença na cotidianidade? Essa é a pergunta heideggeriana para apurar o sentido do ser no mundo. Houve uma totalidade da presença e com ela um modo de ser apareceu, por isso ele quer saber como se processa essa presença. O quem é a realização do eu próprio no mundo. O ser-no-mundo e a co-presença realizam o ser próprio na cotidianidade. O que impõe um caráter existencial em sua leitura ontológica, portanto, um caráter ôntico, isso quer dizer, singular, próprio.

Heidegger está preocupado com uma constituição do sujeito e, com ele, em justificar a possibilidade da ontologia do sujeito, que se dá privilegiadamente na vida cotidiana. "A presença é o ente que sempre eu mesmo sou, o ser é sempre meu” (Ibidem, 2000, p.164) Há uma incerteza nas conjecturas heideggerianas acerca do ôntico e do ontológico. Heidegger coloca dúvidas sobre o “quem da presença cotidiana”, que poderia não ser o eu mesmo. O eu pode ser o seu contrário. O  “não-eu” que pode ser um modo do eu.

Wittgenstein já disse da impossibilidade de buscar o sentido do ser. Essa é uma aventura impródiga. A linguagem e sua análise desmontariam o real sentido do ser que se apresenta em si mesmo. O sentido do ser em sua progressão passa a ser comparado. Heidegger trilhou essa rota. A finitude tornou-se infinitude e a metafísica foi recuperada, aliás sempre esteve ali. Jung chegou mesmo a dizer que Heidegger abusou de uma alucinação lingüística típica de indivíduos com surtos obnubilatórios.

Enfim, a fenomenologia e sua unidade do sujeito e do objeto na consciência, será o novo da filosofia. A consciência deixa de ser coisa, como pensara Descartes, para ser um ato. Esse método e esse projeto irão proporcionar ao mundo a doação de sentido que inexistia antes da fenomenologia. A filosofia agora aparece como ciência rigorosa e a metafísica assume toda sua plenitude. Por isso, Milovic indaga até onde a fenomenologia pode chegar na crítica da metafísica (2004, p. 49). Milovic mesmo sentencia que a grande descoberta de Husserl foi a contribuição que esse dera ao avanço da teoria do conhecimento e, depois, de como os outros aparecem no confronto ao solipsismo, embora, estranhamente esses outros não apareçam como uma referência social.

Fico aqui com a mesma impressão de que a fenomenologia deixou algo valioso para o pensamento humano, que foi a possibilidade de um sujeito que existe e pensa de modo autônomo, sem que se lhe imponham condições externas, no entanto, os outros ficaram confinados nessa consciência, não saíram de lá para uma relação intersubjetiva.

Não podemos esquecer que os escritos de Heidegger, assim como os de Husserl, contribuíram para um eurocentrismo desmedido, onde o racialismo da vida cotidiana e do futuro como missão exclusiva para os povos europeus, em especial o germânico, herdeiro único da salvação do mundo, fez sucumbir qualquer possibilidade de uma alteridade múltipla e universal.

Por Sérgio São Bernardo, membro do Instituto Pedra de Raio, Advogado, Conselheiro da OAB-Ba.

Comentários

  1. Sim sim... no entanto, muitas vezes a sobrevivência ôntica depende de afastar-se do outro. Estar em-si-mesma, é em alguns momentos garantir sobrevivência, criatividade e produtividade. Estar em si é um estágio indispensável à apreensão da sapiência. Eis, que para o ser humano que deseja observar e entender o mundo, se quiser fazê-lo mais profundamente, é melhor que seja sozinho. Com todo respeito á Heidegger.

    A propósito (lindo texto)

    beijinhos

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