A Cidade das Terras de Todos os Santos e Orixás

Por Gabriele Vieira*

Pensar a cidade a partir da multiplicidade de organizações sociais e modos de vida é o desafio que se põe para qualquer administrador político. É nesse contexto que se insere a luta pela regularização fundiária dos terreiros de candomblé na cidade de Salvador. Se observarmos os oito anos de vigência do Estatuto da Cidade (lei nº 10.257/2001), logo surge a seguinte indagação: por que o interesse social regulado pelo “uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo” não pode ser interpretado no referido texto da lei (art. 1º parágrafo único) com uma perspectiva inclusiva e de isonomia para com as entidades religiosas de matriz africana?

Enquanto a Lei de Terras era vigente no país em 1850 o sentimento social e a realidade fática de pertencimento da propriedade privada e conseqüentemente do poder naquela época era evidente. Hoje, mesmo sem a vigência da lei mencionada, ainda assim o poder oriundo do acúmulo da propriedade privada circula entre os mesmos perfis e estereótipos sociais de séculos atrás.

Entendemos que atualmente está mais evidente a emersão de novos sujeitos coletivos de direitos, basta observarmos que as políticas públicas não escapam desta “nova onda” de reivindicações e tenta adequar-se as demandas postas, haja vista as legislações no âmbito Federal, tais como, o Decreto de nº 4.886/2003, que institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) e dá outras providências; o Decreto de nº 4.887/2003 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; o Decreto de nº 6.040/2007, que institui a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais; e, mais recentemente, o Decreto de nº 6.872/2009, que aprova o Plano Nacional de Programação da Igualdade Racial (Planapir), e institui o seu comitê de articulação e monitoramento. Elas inauguram uma compreensão hermenêutica que modifica o modo como as políticas públicas são pensadas.

Particularmente, as religiões de matriz africana - como partes integrantes de uma cosmovisão de mundo multicultural-, desempenham um importante papel ao disseminar o respeito à diversidade e assim sendo contribuem com o interesse social disposto no Estatuto da Cidade através do não estímulo a violência e pela preservação da paz e culto aos elementos da natureza como fonte de energia da religião. Ademais, os trabalhos de cunho comunitário que realizam os templos religiosos de matriz africana também contribuem com a justificativa do interesse social.

O conceito de territorialidade para os povos e comunidades tradicionais transcende a noção descrita na legislação pátria fundada prioritariamente na valorização dos direitos e garantias individuais e patrimoniais. Para estes o território é também a extensão de seu corpo, de seu modo de vida, de sua existência como ser humano coletivo e social. É neste sentido que a luta pela regularização fundiária não pode deixar de levar em consideração os aspectos sócios culturais destes povos.

Por exemplo, as comunidades remanescentes de quilombos, inseridas na ordem dos povos e comunidades tradicionais, são definidas legalmente, conforme decreto nº 4.887/2203 pelo critério da auto-atribuição. Isto quer dizer que a autonomia destes grupos é preservada desde a sua concepção de existência legal para implementação de políticas públicas, e ainda assim a sociedade ignora este aspecto reforçando a chaga do racismo.

Neste diapasão, os templos religiosos de matriz africana se constituem como territórios históricos com total presunção de resistência da ancestralidade afro-descendente, e muitas vezes vítimas de intolerância religiosa, até mesmo pelo poder público quando, por exemplo, se omite ante as dificuldades simbólicas dos candomblés em se constituírem como entidades religiosas legais. Muito ainda há ser feito, pensado e proposto para que os templos de matriz africana possam ser respeitados como o Estado laico assim prevê. A laicidade, assim como os outros direitos, deve ser isonômico, ou seja, para todos, na medida de suas desigualdades para que então seja alcançada a igualdade formal que a lei propõe.

*Gabriele Vieira - Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Coordenadora Jurídica do Instituto Pedra de Raio.

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