A ERA DA LIQUIDEZ

É tempo de mudanças rápidas e temporárias. Tudo tem que ser breve e sem consistência. Qualquer coisa que demore é sinal de atraso e insegurança. O conceito de liquidez vige na imaginação das pessoas como uma senha para sobrevivência no mundo de hoje. Dinheiro líquido, sexo líquido, poder líquido, consumo líquido, identidade líquida, comunidades líquidas, ética líquida, amores líquidos... Nada é tão estranho quanto a idéia de algo concreto e eterno. A segurança está na solidez do que é transitório e imaterial. Temos que avaliar se estar aqui e em qualquer outro lugar, como sujeitos flexíveis e solúveis, é uma benesse da globalização ou o anúncio de uma nova barbárie.



Fazer parte de uma comunidade real ou virtual envolve um caráter liquefeito de negociação identitária. Ficou mais fácil assumir identidades. Muitas vezes as adquirimos para cumprir certa agenda de direitos e interesses. No mundo do capital e do consumo, ser diferente é possuir uma identidade líquida atenta às inovações trazidas pelo mercado. No mundo do pensamento que nega o capitalismo, ser diferente é estar indo de encontro às idéias líquidas que endeusam identidades e pertencimentos ao mercado globalizado. Surge então um questionamento: quais conceitos de pertencimento e identidade estão a decidir o que é o homem e a mulher na sociedade do século XXI? Qual é a minha tribo? E, se faço parte de uma, o que devo fazer com as outras identidades que possuo? E, quando elas entram em conflito, quais os critérios para priorizá-las?



Certas categorias (religiosas, culturais, morais, geográficas, partidárias, etc.) continuam a localizar na aparência de algumas pessoas um sintoma da necessidade humana de exercer algo que lhe é inerente: o poder. O que deixa evidente que tais diferenças são acentuadas para justificar o exercício desse poder. Isso ocorreu na antiga Grécia – entre os gregos e os persas - na colonização africana - entre os Tutsis e Hutus em Ruanda. Isso ocorre hoje no Oriente Médio – entre judeus e árabes e, no Brasil, entre povos indígenas e povos mestiços de ascendência européia nas áreas de fronteira.



Nesse contexto e visão, existem pessoas morrendo de fome e sendo assassinadas em razão de sua imagem, identidade e pertencimento. O que soa como um alerta, ora oportuno, ora estratégico, para a esquerda e também para os movimentos emancipatórios: é a identidade defendida como uma questão nacional. Isso também tem soado como um alerta para os representantes do capital: algumas pessoas só podem ser salvas em razão de suas imagens, identidades e pertencimentos.



Muniz Sodré e Zygmunt Bauman, dizem a mesma coisa de modos diferentes: a identidade só se realiza em razão dos diferentes, e ela tanto oprime quanto liberta. Neuza Santos Souza nos fala que uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Tudo isso apenas para afirmar que a idéia de liquidez associada à idéia de identidade e pertencimento, está nos dando sinais de que algo está surgindo para desencantar dois dos pilares do mundo moderno: a racionalidade e a certeza. Enfim, a inconstância das coisas é o espírito desse novo tempo. Não precisamos ser tão consistentes para sobreviver nele. Tudo é relativo. Tudo é efêmero. Quem caiu se levanta. Quem se levanta vai cair. Nossas opiniões podem mudar daqui a um instante.



Então, o que nos liberta, a liquidez ou a rigidez? Ser igual é ser cafona? Ser diferente é ser moderno? Ser diferente não é também ser cafona e ser igual não é ser moderno? Na política, não tem sido a liquidez das idéias e ações que tem ganhado os debates? No consumo, não tem sido a rapidez que tem pautado o mercado? No amor, não tem sido o celeridade que tem dado o tom das relações afetivas? E na guerra, não é a morte afobada e sua notícia açodada que tem sido a tendência? Estamos pautando um debate fora do lugar ou estamos sendo vencidos pela liquidez dos conceitos?



Sérgio São Bernardo

Professor, Advogado, Mestre em Direito- UNB

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